segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Ética e Modernidade: a falência do sentido


Ontem foi dia de um certo desabafo com os amigos...Acabei encontrando o assunto da minha discursão, só que um pouco mais contextualizado para a gente refletir:


“O homem é um animal político” (zoon politikos)




Vivemos num momento em que as referências tradicionais desaparecenram: o que é que, hoje, nos permite dizer que uma lei é justa? Nós o ignoramos. A crise dos fundamentos que caracteriza todo nosso universo contemporâneo, crise visível na ciência, na filosofia ou mesmo no direito, reverbera essencialmente numa crise de alicerces éticos. No momento em que as ações do homem se revelam cheia de riscos diversos e potencialmente perigosas, estamos precisamente mergulhados no niilismo, essa relação com o “nada”, da qual Nietzsche foi, no século passado, o profeta e o clínico sem igual. O que significa niilismo? Precisamente que todas as referências ou normas da obrigação se dissipam, que os valores superiores se depreciam. O niilismo designa o fenômeno espiritual ligado à morte de Deus e dos ideais suprasensíveis. Niilista, nosso fim de século é igualmente marcado pela morte das ideologias e das grandes narrações totalizantes, morte na qual se enraíza a ética do futuro. As doutrinas do século XVIII relativas à emancipação do cidadão, o pensamento das Luzes, que via na história uma teleologia racional, a teoria hegeliana da formação do Espírito no mundo, o marxismo e seu reino dos fins encarado como sociedade sem classes, formam o manancial das grandes narrações que se tornaram extintas no que se convencionou chamar de pós-modernidade. A crise do marxismo evoluída para um profundo perecimento constitui, sem dúvida, um dos dados maiores da virada do século. Quando desmorona a concepção de uma história em progresso, quando ninguém dá mais o menor crédito ao tema de um proletariado liberador do gênero humano, quando funcionam a desilusão ou a dúvida quanto a todo projeto global de sociedade, então é preciso inventar novas normas éticas ou nos elevarmos até o pensamento de fundamentos inéditos. IndividualismoSem as ideologias nascem as formas contemporâneas do individualismo, propícias para o desenvolvimento de novas regras de conduta capazes de forjar uma nova moralidade. O que é o individualismo? Uma atitude que privilegia o sujeito em relação à coletividade. No seio de uma modernidade que repele o transcendente, é o indivíduo que se torna valor supremo. Já no fim do século XIX surgem as primeiras manifestações do individualismo, porém diagnosticadas por Nietzsche como sendo de um caráter bem diferente do de hoje: “O individualismo é uma variedade ainda modesta e inconsciente da vontade de poder, manifestado pela necessidade do sujeito se libertar da dominação da sociedade (quer seja a do Estado ou a da Igreja)”. Trata-se aí do antigo individualismo, que aparecia ao fim dos oitocentos como uma conquista: uma emancipação diante das formas coercitivas do poder. O individualismo contemporâneo não designa mais um triunfo da individualidade em face das regras constrangedoras, mas a realização de sujeitos estranhos às disciplinas, às regras, aos limites diversos, às uniformizações. O que encontramos nesse individualismo contemporâneo? As delícias do narcisismo, a explosão hedonista, mais que a uma conquista de liberdade. Promoção de valores idiossincráticos, permissivos, psicologistas, eis o que se esboça na idade pós-moderna. Assim, entramos na era do narcisismo. Encerrados os ideais messiânicos, desvanecida a fé nas ideologias, é chegado o momento do indivíduo narcísico. Se o individualismo moderno, longe de ser virtude e autonomia, significa passividade, e até apatia, “estilo cool” e descontraído, então se põe para a ética a questão: que é que, nas nossas sociedades democráticas avançadas, pode se tornar fator de universalização? Na era dos homens vazios, votados às escolhas privadas e narcisistas, é possível redescobrir uma macroética, válida para toda a humanidade no seu conjunto? Se o individualismo configura nossa modernidade, se a sociedade é assim atomizada numa poeira de Narciso, como requerer então, para a ética, um princípio que possua uma validez universal?Novas TecnologiasCiência e técnica produzem legitimamente o medo numa sociedade que incorporou o tecnicismo. A idéia da periculosidade da tecnocracia abre um contexto novo de mudanças qualitativas no agir humano. As novas tecnologias engendram um crescimento brutal dos poderes do homem, tornado sujeito, mas também objeto de suas técnicas. A situação é tanto mais perigosa na medida em que o homem tende a experimentar e inovar, não num espaço que lhe seja exterior, mas no seio das próprias relações humanas, incorporando a mecânica da eficiência que dimensionou a idade

industrial. Nosso “ser-herdado” é que se acha posto em questão.Quando o homem está em contradição nas ciências (das tecnologias biológicas do Genoma e dos transgênicos, à energia nuclear e às parafernálias derivadas do avanço cavalar das comunicações) pela primeira vez nos apercebemos que determinadas ações podem ser irreversíveis. A “des-moralização” do homem, privado de referências, requer a urgência de uma nova ética, porque a técnica não é um simples instrumento, um mero prolongamento da mão humana, mas o germe de um verdadeiro mundo, a arquitetura de um outro real. A produção técnica representa em nosso tempo uma organização geral do mundo, uma maneira de ser, um universo, e não somente um conjunto de procedimentos decorrentes de um conhecimento das leis científicas. Ela faz apelo a uma reformulação da ética em torno de novos princípios e a uma nova teoria da responsabilidade.


por Jacqueline Russ